sexta-feira, maio 26, 2006

Palhaço de chocolate

















Era uma vez uma menina chamada Sara. Ela vivia com a sua avó desde que se lembra.
De olhos cor de amêndoa, sardenta e com umas longas tranças meio aneladas enfeitiçava quem se passeava pela rua. Na posse de um sorriso do tamanho do Sol, dizia olá a quem se metesse com ela.
Todos os dias, a caminho da escola e pela mão de sua avó, pedia-lhe que parassem, por uns segundos defronte de uma vitrina.
Uma vitrina enorme, toda ela feita de chocolate. Desde bolos a bombons, trufas, e alguns brinquedos. Um deslumbramento para qualquer criança. O que lhe despertava, ainda mais a atenção, era um palhaço imenso com um semblante sorridente, um olhar farto de ternura. Parecia falar com ela.
E a face inundava-se-lhe de alegria. Um palco de satisfação para ambas.
Sendo, uma família de poucas posses, a avó nem sempre lhe comprava o que ela queria. No entanto, Sara desde muito bebé que aprendera isso, mas bastava a avó olhar para os seus olhinhos vivaços, para perceber o que queriam dizer.
Para Sara, o mais importante era poder admirar aquela montra e, se fazia toda a diferença por breves minutos, contemplar aquele palhaço.
Um dia, a avó, deixa a neta na escola e entra na confeitaria. Pede para falar com alguém responsável. Ficara com medo de que o palhaço desaparecesse dali. E, após as explicações ao dono da dita doçaria, pede para que não venda aquele palhaço.
O senhor Ernesto da chocolataria concordou. Nunca a Sara soubera que a avó tinha ido falar com ele. Um dia, o senhor Ernesto atento à chegada de Sara e sua avó, chamou-as. Ela entra contente e meia envergonhada e diz-lhe que o palhaço dela tem nome e, que costumavam falar um com o outro. Enternecido com aquele monólogo, dá-lhe um chocolate pequenino em forma de palhaço, igual ao palhaço da montra.
Todas as manhãs, o senhor Ernesto estava à coca de Sara para lhe oferecer o palhacinho de chocolate, que lhe fazia companhia até à escola.

Reinventar

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia.
O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo.
Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida.
E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.
Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.


Mia Couto

quarta-feira, maio 17, 2006

As pessoas mentem. Às vezes porque estão aborrecidas, às vezes porque querem algo diferente, às vezes porque são tímidas e querem sentir-se outras pessoas. (...)

A possibilidade de me tornar igual a todos os outros, não apenas nos meus comportamentos, mas também na minha estrutura interna tornar-me-ia incapaz de sentir coisas reais...

segunda-feira, maio 15, 2006

Hoje

... quero ser pássaro… tocar o céu e ser feliz
Assistir ao nascimento de um ou outro girassol,
À chegada do vento ameno e doce,
Sentir as trovoadas de verão, a tocar-me a face
E dizerem-me que os seixos que moram
em mãos que ferem ... a chuva há-de levar.

Quero ser insecto e … vaguear livre e solto
Pelas ramagens enlameadas que a terra tratou de atulhar.
Quero ser flor para te poder tocar,
se me cheirares.

Quero ser rio, banhares-te em mim,
Sem que o acaso anuncie que eu cheguei.
Quero ser fruto, deleitar-me em tua boca,
Afeiçoado em sabores por descobrir,
Odores a reconhecer, extemporâneos e incontamináveis
Que se concretizarão.

Isto e aquilo,
Pudera eu buscar nestes longos devaneios
A tua essência, a tua alma, a tua sabedoria e,
Transformá-la em meros enleios mirabolantes…
Ah, pudera eu enlevar-me ao saber-te que me conheces!

quinta-feira, maio 04, 2006

O Livro dos Amantes

Pusemos tanto azul nessa distância ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento a escorrer para tudo o que ele invade.
Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.


Natália Correia

É talvez o último dia da minha vida.

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

Alberto Caeiro

terça-feira, maio 02, 2006

Desencontros

Decidi ir escrevendo num guardanapo o que conheci de ti.
As palavras mais simples escapuliam. Contrastes, opções, desencontros e impressões abandonavam a fantasia para o papel. Uma autêntica carraspana de verbos e adjectivos enchia a folha de papel meio esfarrapada.

Despejaste o pacote de açúcar no cinzeiro sem querer, mas ainda assim cedeste a uma gargalhada. – e logo percebi que alguma coisa te inquietava. Sendo importante não me parece que consigas permitir esse ou nenhum outro momento de delícia a quem te observa.

Naquele feriado chovia a cântaros. Tinhas trabalho por terminar, mesmo assim, saíste de casa. Precisavas de espairecer. De pensar em tudo e, em nada.

Apetecia-te, meditar buscando por fundo, o burburinho do café. Do que vi, o que mais gostei foi, de teu cabelo. Era bestialmente liso e luminoso e assumia em baixo, na nuca, algumas afluências díspares de um acinzado ténue.

Teu impermeável pendurado no bengaleiro, pingava. Sorrias se davas uma passa. Sorrias se alguém entrava. Parecia um sorriso meio agitado. Nunca tinha visto ninguém saborear um cigarro como tu. Pelo menos, relacionar-se assim com eles. A maior parte dos fumadores já não sente o que fuma. Apesar de pensares, constantemente, em deixar de fumar.

Quando te certificaste, que as mãos estavam secas, tiraste um bloco da pasta que trazias e começaste a gatafunhar. Não percebi o que o teu semblante transportava para o registo. Pediste outro café, porque te apeteceu o pequeno chocolate que trazia.Pediste a conta e guardaste o bloco. Soltaste um esgar - por não teres a certeza que eu vá entender a tua letra.

Passaste por mim e voltaste a sorriste de uma forma mordaz. Como que pressentisses a minha curiosidade. A ansiedade que aquelas palavras que escreveras naquele bloco, me provocaram. Vestiste o impermeável e entraste na rua, onde continuava a chover.

Dali a instantes, fiquei lívida. Voltaste atrás. Pensei que me fosses dirigir a palavra. Deixaste a folha meio rasurada em cima da minha mesa e saíste porta fora. Falavas de mim. Um pensamento.