terça-feira, dezembro 21, 2004

Ma(e) terna

Nasceu, mais, uma criança. Gesto singular, instintivo. E(terno). Alice cresceu. E a ligação com a sua mãe sempre fora desequilibrada, difícil ou nunca fora, sequer, uma relação. O exemplo de maternal que sempre teve, assim como a sua própria formação, foi sua avó. Para ela, era a imagem reflectiva de o que é ser mãe. Sentir uma familia. Referência de carinho. Prova de ternura, necessidade, e de significado. Não se lembra, se foi amamentada. Também não é importante, ou será? Recorda-se, ou melhor sempre sentiu, que sua mãe lhe tirara a chucha muito cedo, por já estar, mais que na hora de acabar com tanto chuchar. Poucas ou nenhumas lembranças tem, no entanto, sente que sua memória fora vedada para receber tais fragmentos de imagens.
Poder contemplar e perceber o que é sentir o cheiro de sua mãe, o calor do seu colo, as palavras carinhosas que se dissiparam entre gerações. Nunca lhe ensinaram, se calhar. Hoje pensa que: a ausência e a presença, não tiverem significado. Por tantas razões, nunca escrevera sobre sua mãe. Nunca conseguiu agarrar referências, ou então, inventava-as, para poder ter meras palavras e imagens que, outrora, ficaram na ignorância.
Elas passaram sempre por cima de tudo o que a fazia feliz.

Numa qualquer viela - parte III

Distraio-me com as pessoas, com a confusão da rua, com o colorido das montras, com os vendedores de castanha assada.
Em frente, há uma taberna. Não são muito diferentes as imagens, e o mundo é o do costume. Um velho que, inexplicavelmente, está sempre a ler o mesmo livro empoeirado. A D. Júlia, dona do café, que parece viver atrás daquele balcãozinho afogado em jornais e revistas. Os artolas do grupo de fados que têm sempre uma guitarra portuguesa debaixo do braço, e uns copos de vinho tinto em cima da mesa. De quando em quando, trauteiam a despique.
O Sr. Artur, esse, já se confunde com a própria taberna, com os cartazes que anunciam os pratinhos de moelas, de caracóis, os espelhos baços e o ambiente que é tão peculiar.
O cauteleiro, com seu ar grosseiro e curtido pelo sol, tenta vender em alarido desbragado os seus bilhetes pela rua abaixo, para ganhar algum.
D. Amélia que, diariamente, se empoleira à janela para dar conta de quem passa, espreita o cauteleiro. Este, sempre lhe tenta vender um bilhete. Enquanto a garotada joga ao berlinde, a vizinha de baixo arrelia-se. Aqueles garotos ocupam o seu vão de escadas para trocar os cromos que não têm, ou então para chalacear com as meninas bonitas que por ali desfilam.

As ruelas mais estreitas denunciam imundície de noites anteriores. Borracheiras consumadas, regurgitos sentidos e dignos entre desamores e paixões de uma noite.

E ocorre mais um dia. Nesta ruela que, à primeira vista, parece frívola. Numa viela qualquer a subir ao Bairro Alto. Enfeitada de uma essência particularmente espontânea e característica. Puramente genuína e bairrista.
Algumas raparigas de índole duvidosa chegam da labuta. De mais uma noite dolorosa e marcada pela espécie de afazeres a que se dispuserem. De há muito tempo a esta parte que não sabem fazer mais nada. Descendem de cognomes desconceituados que as perseguem uma vida inteira sem prazer e sem destino.
À deriva, elas governam a sua alma. Ao Amor, não lhe conhecem o sabor. São aquelas, as rameiras, apelidos de tão mau gosto e sem consciência. Bradados por gentes sem escrúpulos.
A vida nunca, ou muito raramente, segue o curso que nós lhe queremos dar.

Numa qualquer viela - parte II

Ao contrário do que, seguidamente, presenciei.
Numa das paredes do café, existe um espelho a todo o comprimento. Ao levantar os olhos do jornal, apercebo-me que um casal se entreolha. Nada são um ao outro. Cada um em sua mesa. Tornam-se cúmplices de sorrisos e olhares atrevidos. Desenvolve-se uma linguagem de sedução que me fascina. Prudentes meneios geram uma atmosfera de desejo, uma tentação em pecar que jamais pensaria assistir. A voluptuosa libertinagem encanta-os e delicia-os a avançar naquele jogo lascivo. De forma arrojada transmitem autênticos sinais de acasalamento. Afoitamente, ela mordisca os lábios, e num simples trocar de pernas fá-lo, discretamente, salivar. Paira uma aura de excitação tal que me eriça arrebatadamente. Desfrutava. Sentia-me à mercê do incontrolável.
Ela deseja ser desejada. Impulsivamente, levanta-se e dirigi-se à toilette. Possivelmente, para retocar a maquilhagem. De soslaio, encara-o como se o convidasse a acompanhá-la. Tentador. Não? Ele nem tenta disfarçar e segue-a. Só me lembro de olhar para o relógio e ter passado meia hora. Continuam esgueirados, sem dar notícias. A curiosidade mata.

Faz-me pensar em escapar à rotina. Algo de desavindo se passa ali. Especularia que: São lugares de rompante que passam a correr na nossa vida. Toca e foge: "Em geral, os cenários pouca importância, têm". Calham, e às vezes não calham mal. Tinha de ser ali: "Num café banal, onde tudo pode acontecer ...” Fortuitamente, um casal estranho sente atracção. Nenhum deles faz ideia de quem é. É irrelevante. Interessa só que os sentidos estejam apurados. Não importa quem repara. A luxúria, que ambos querem partilhar, sobeja.
A tarde segue calma o seu curso. Os cadernos debaixo do braço de alguns jovens que passam na rua e regressam da escola, mal se conseguem segurar. Nem disfarçam a vontade em pegar neles. Parecem alheios em querer assimilar o que a escola lhes tem para oferecer. Devagar, particularmente devagar, seguem pela rua afora, rindo uns com os outros, num ritmo que, sem darem por isso, se distinguem dos demais.

Numa qualquer viela - parte I

Atravesso a rua. Há um cinema com uma livraria debaixo do chão. É ali, no meio dos livros, que gosto de estar. Fazem-me tanta falta, hoje, todos os livros que não li. Custa-me menos escrever. Tardo em saber. Importo-me, sim. Sei que tenho para dar. Marco ali encontros. Faz-me bem sorrir entre eles. Ao lado há um mercado. Passeio no meio das vendedeiras de flores. Elas metem-se comigo e eu faço as minhas rábulas. E com elas me perco.

Há um café, onde costumo ir. Nunca sei o nome. Ao fundo, vejo uma mesa vaga. Peço um café. Compro o jornal. Leio as gordas. Encarece a qualidade de vida. As guerras propagam-se como vírus. Os transportes, a electricidade, a alimentação, o telefone, a gasolina, os táxis. Enfim, num país que atravessa a pior fase económica. Respira-se desalento e frustração. Um autêntico desamparo colectivo. O desemprego tende a crescer. A fome e a miséria. Com a entrada do novo século descobre-se o que foi encoberto durante tantos anos, a prática desmesurada da Pedofilia. Ecos de tantos anos recalcados espalha-se em toda a Europa. Palestina e Israel estão, novamente, ao rubro. Assassinaram Ahmed Yassin. Quando é que o mundo se vai entender? Não pode haver só maldade no mundo, não pode. Desprazer aos meus olhos.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Mesmice

Entrou em casa. Será que se enganou. Não. A casa estava fria e escura. Começara a não se reconhecer nela. Os mesmos móveis, a mesma cama, o mesmo sofá, as mesmas cadeiras. Nos mesmo sitios, nos mesmos recantos. As vivências estavam gastas. AS cores e os cheiros, tambem.
Sentia a falta de esconderijos que, outrora, a equlibravam. Esvaído, cansado. O refugio que permaneceu esquecido. O tempo parara. Nada mudara. Nada se passava ali. Já nem sequer as palavras habitavam aquele espaço sem vida. Sentia-o como se já não fosse dela, o mesmo vazio imensurável, por identificar.
O ter de lá voltar e vê-lo todas as noites, tornara-se enfadonho e desinteressante. Até o sono era igual, e o mesmo silêncio. As paredes aguentavam a estrutura, onde a sua única interlocutora era a infelicidade com que ela mirava o seu lar, o único e o último canto que mantera estes anos.

De manhã, Rute sabe que o Sol vai morrer

Rute sabe que o Sol vai morrer. Mas, não se assusta. Sabe que, a partir das dezoito horas ele morre. Escurece, mas não se importa. Ele até pode morrer antes, se quiser. Há muito tempo que a sua vida é uma sucessão de expectativas. Nenhuma delas realizada. Por isso espera ver o sol morrer.

Uma tarde, quando o sol era uma estrela cadente, pediu para uma bailarina nascer no lugar da lua. Mas não nasceu. Nenhuma bailarina vai nascer no lugar da lua. Depois, se nascesse, não seria uma bailarina. Mas uma deusa. E riu.

Não que fosse impossível uma deusa nascer no lugar da lua. Mas porque as deusas não nascem mais. Elas se afogaram nos Lusíadas e nunca mais emergiram. Estão lá, no fundo de um poema, presas às barbas e aos cabelos de Neptuno. Camões que o diga. Ele que teceu os raios de luar no rosto de Neptuno e deu-lhe o nome de Vasco da Gama.

Saber

Em tempos, tive um livro de poesia de Eugénio de Andrade. Nos tempos de escola, na época em que estudei não se lia poesia deste autor. Emprestei-o a uma colega, penso eu, e fiquei sem ele.
Aqui vai um link sobre Eugénio de Andrade, para quem esteja interessado.

Kisses

Adeus

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade



segunda-feira, dezembro 13, 2004

... tanta falta (des)prendida

Hoje, consciencializo. Nunca estiveste. Ou eu. Nunca entendi muito bem, o estarmos e o não estarmos. O que tu querias. O que eu queria. Criei uma imagem de ti, à minha maneira. Nunca falámos sobre o tema, ou outro que fosse. Nunca nenhum assunto era oportuno, importante ou digno para ser discutido. Foste sempre aquilo que eu nunca quis que fosses. Ou eu sempre te desejei diferente. E tens pairado como uma sombra. Como que, os meus passos passassem a ser censurados. Não me consigo livrar de ti ou do que tu representavas. Apareces sempre nas piores alturas. Denuncias-te quando me decido a fazer algo. E continuas com o teu risinho sarcástico, dizendo-me o que nunca conseguiste, quando me tinhas. "falta-te coragem"! A vida para mim, sempre me soube a uma efémera tarde de verão que passa e vem. Todos os anos, assim como, uma tarde chuvosa. Sem que eu dê conta, as flores continuam a nascer e a morrer. As marés continuam a subir e a descer. As crianças continuam a crescer e a envelhecer. O tempo continua a não parar. Sei apenas o que não quero. Nem isso, com certeza, sabias de mim. Teres-me-à conhecido? Ter-te-ei interessado? As palavras sempre te assustaram. Terei sido, apenas, um capítulo maior e doloroso do teu romance, provavelmente. Pergunto: Quem sou eu? O que fiz? O que construi? Estou em falta para com o universo: Da trivialidade à importância que é ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Ter a capacidade de me reencontrar. Ver-me e conhecer-me, sempre foi uma trivialidade para ti. Uma parvoíce. Ironizavas dizendo, que isso, era coisa de intelectuais. Nunca percebeste que a minha e a tua evolução teriam de passar por este percurso. A aprendizagem de nós mesmos, torna-se o nosso reflexo na realização com os outros. Mea culpa, apesar de sentir necessário este percurso, nunca o soube transmitir aos outros.