quarta-feira, outubro 26, 2005

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade

"Não passes o tempo com alguém não esteja disposto a passá-lo contigo."

(Gabriel García Marquez)

terça-feira, outubro 25, 2005

África (doce viciante)

África

Sonhei um dia
Com as tuas cores
Com o teu perfume
Com o teu sabor,
Provei-te e acaricio-te
Quero sempre mais e
devagar uso o teu gosto.
Sinto a tua falta mas,
se um dia me atrever
cedo à sedução
Que estremecia
naquele horizonte sem fim.
Era Agosto e estava quente
ardia de contentamento.
E o meu corpo viciou-se em ti.
Ainda sonho.
"De amor nunca se fala o suficiente".


Ingmar Bergman, cineasta sueco.

o tempo do Rossio

Já não se passa pelo Rossio.
pecúlio ilustre de existências calejadas,
paredes frias entranhadas de estorias dificeis,
e azedumes de uma ou outra mulher,

escada rolante ou tapete que, corpos infindáveis carregava,
resistentes ou calosos, anafados ou escanzelados,
para cima e para baixo, eram as regras de outrora,
foram do seu tempo, tempo azedo.

por onde se passava,
o relógio lá falava e foi-se gastando o tempo.
O moço, cauteleiro ou jornaleiro
já não tem onde vender.

E os habitués, onde correr.

Aglomerações se viam, sem conta
ancoradouro étnico, cenários mistos
peles combinadas, cabelos multicores,
já não têm porque dançar.

A trote se pavoneavam pelas redondezas,
culturais ou coloridas, de cinzento, ou de preto
e as bilheteiras imponentes, lá cuspiam
os seus bilhetes.

E a azáfama, descontinuada.
Media o tempo do Rossio.

Estação. Rossio. Relógio. Bilheteira.
Escadas. Rolantes. Gentes.
O dia, ainda mal dormia.

Nunca me esqueci de ti

Nunca me esqueci de ti

Bato a porta devagar,
Olho só mais uma vez
Como é tão bonita esta avenida...
É o cais. Flor do cais:
Águas mansas e a nudez
Frágil como as asas de uma vida

É o riso, é a lágrima
A expressão incontrolada
Não podia ser de outra maneira
É a sorte, é a sina
Uma mão cheia de nada
E o mundo à cabeceira

Mas nunca
Me esqueci de ti

Tudo muda, tudo parte
Tudo tem o seu avesso.
Frágil a memória da paixão...
É a lua. Fim da tarde
É a brisa onde adormeço
Quente como a tua mão

Mas nunca
Me esqueci de ti


João Monge / Rui Veloso

Saiu para a rua

Saiu decidida para a rua
Com a carteira castanha
E o saia-casaco escuro
Tantos anos tantas noites
Sem sequer uma loucura

Ele saiu sem dizer nada
Talvez fosse ao teatro chino
Vai regressar de madrugada
E acordá-la cheio de vinho

Tantos anos tantas noites
Sem nunca sentir a paixão
Foram já as bodas de prata
Comemoradas em solidão

Pôs um pouco de baton
E um leve toque de pintura
Tirou do cabelo o travessão
E devolveu ao rosto a candura

Saiu para a rua insegura
Vageou sem direcção
Sorriu a um homem com tremura
E sentiu escorrer do coração
A humidade quente da loucura

Letra de Rui Veloso

segunda-feira, outubro 24, 2005

Almost granted

Nem sequer palavras azedas, ele proferiu, naquele dia. Já não a via há mais de um mês.
E no entanto, já muito pouco havia a dizer, quando estavam juntos.
As suas vidas trilhavam percursos diferentes.
A ambição e o poder ocupava a simplicidade que lhe fora inata. Ela não se importava com isso, desde que ele lhe desse atenção. Também a sua vida iniciava um ciclo diferente do dela. Ele insistia que tinha saudades. Mas quando estava por perto era como se não a visse. Era como se ela tivesse de fazer parte daquele convívio. Para não ferir susceptibilidades. Porque a conhecia há muito tempo. E porque passaram por tanta coisa, juntos. Como tudo mudou. Somente isso. E se ela precisava de companhia, essa companhia era muda. Os valores mudaram. As ausências permanecem. As conversas são diferentes, e no entanto, tão iguais. Os desfechos previsiveis. Os julgamentos e as rotinas não se alteram. As compatibilidades afastam-se cada vez mais. E surge um eco oco em redor, como se por pena, ela assistisse ao desempenho e desenvolvimento do que se passou durante estes anos. Ela mantem-se inerte, à procura de uma luz que a faça despertar, para agarrar o que perdeu.
Um gesto, um aceno. Uma conversa, ou uma troca de vivências. Qualquer acaso que a sustente. Recuperar a cumplicidade que os unia. O saudosismo de uma noite. O alvorecer da gargalhada. E se ele gostava. Alvoraçados se perdiam um no outro.
Elogios desprendidos, se tornaram.
E no entanto, eu estou aqui. E tu para onde te foste?

quinta-feira, outubro 20, 2005

Palavras de Outono

Pela manhã, as palavras acizentam-se;

As faces perdem brilho. O Verão já lá vai.
Os dias são baços e pequenos, de uma insignificante palidez.
O olhar, as falas, há indefinições no caminhar.
O cinza chuvoso empalidece o ruído da avenida
traçando calor sem cor.

As manhãs de outono fogem à definição,
misturam-se em nuvens pesadas nalguns raios de sol
e o amarelo enfraquecido alimenta algumas árvores
(estranhas).

O anoitecer perde-se;
o cinza assume — como o chumbo, escuro.
O céu torna-se mais baixo — pode-se tocá-lo
Arranco um pedaço,
húmido, frio como o cansaço, e o asfalto é sujo
e tinge-me as mãos.

Insisto em pincelar de vermelho, em tons de azul
e aquele amarelo girassol hiato no passado.
As pinceladas tornam-se pesadas.
como os prédios cinza, (enormes prédios cinza)
tão pesados como os vagões cinza, lotados de pessoas
sombrias e, escravas das suas horas cinzas..

Sento-me diante da janela suja:
à espera do sol, à espera do próximo Verão.

A vida se esvai em sons vagos por repressões, ambições vulgares e estúpidas,
são gestos inconscientes em esboços constantes no lençol frio.

o olhar de silêncio é inerte,
divaga o sorriso lento e meus pés ficam cansados
e os sons das minhas mãos beijam terra e pó
em pequenas taças de vinho e sal.

Ecos de uma linha tênue
fragmentos de saudades,
emoções dispersas e soltas
nalgum asfalto cinzento desconsolado.

Lembro-me vagamente destes resquícios,
sensações prazerosas, só já são
apenas traços que a chuva, tenazmente, inunda.

SInce September

Desde Setembro que não vinha aqui. Não tem sido fácil. Nestas semanas após as míseras férias que tive, o tempo de lazer tem sido muito pouco. O trabalho tem sido imenso. O descanso e pequenos intervalos neste espaço não têm, sequer, sido. E a verdade é que a falta de computador em casa tem permitido esta ausência mais acérrima ao blog. Ms as coisas compôr-se-ão e terei um ordinateur chez moi, as soon as possible. Poderei, assim, todos os dias marcar presença neste diário.
Voltará a minha inspiração, Deus queira. Pois desde 2001/2002 que ela não me dá noticias.
O estimulo, a motivação têm andado de mãos dadas por outras terras e gentes.